No começo, a gente se impressiona com todos aqueles clichês sobre a segurança das cidades, a limpeza das ruas, a polidez da população. Fica maravilhado com as casas sem grades e caixas eletrônicos 24 horas na rua. A pontualidade do transporte público, a presteza dos funcionários; tudo nos encanta nos primeiros meses em solo estrangeiro.
No início, a gente se orgulha quando consegue pedir um café sem precisar repetir aquela palavra cuja pronuncia nunca sai direito. Dá gosto quando entendemos os nativos depois de fazê-los repetir apenas uma vez o que falaram, e um alívio por não precisar mais dar um sorrisinho disfarçando ter entendido o que foi dito (que invariavelmente é uma pergunta).
No começo, nossas ambições profissionais ganham um choque de realidade: como explicar sua complexa planilha de redução de custos gerada por processos mais enxutos no departamento de almoxarifado, se mal consigo entender o vinho que aquele senhor pediu no restaurante? Atender clientes em um bar já é desafiador o suficiente.
Passado um tempo, você percebe que não é nada de outro mundo poder usar seus eletrônicos dentro de transporte público, que não há nada mais justo do que ver os altíssimos impostos pagos pela população se converterem em cidades agradáveis de viver. E por que você, garçom, ajudante de obra ou faxineira, que dá um duro danado no trabalho, não tem o mesmo direito que um advogado em comprar um iPhone 6 no fim do mês?
Sim, tá tudo errado no Brasil e, mesmo que não seja preciso cruzar fronteiras prá descobrir isso, nosso espanto com pontos triviais no funcionamento de países desenvolvidos só reafirma essa ideia. E se tá ruim, o jeito é dar o fora, certo? Nem sempre.
Para mim, passado esse período em que tudo impressiona, já apta a pedir não só um café, mas uma refeição inteira, e com rotina de trabalho estabelecida, o que veio em seguida foi uma mudança de padrão. Ao “dar o fora”, tudo aquilo que te surpreendia no início, depois de uns anos, passará despercebido. Vira parte da rotina, você adota os mesmo hábitos e logo perde aquele encantamento inicial, quando tudo era novidade. Mais ou menos que nem marido que deixa de elogiar a mulher depois de um tempo – ou mulher que não valoriza mais os tantos atributos que um dia a fizeram se apaixonar pelo marido.
E que bom que assim é. Seria muito chato alguém que, depois de anos morando fora, continuasse admirado porque as pessoas jogam lixo no lixo, vizinhos se respeitam e políticos trabalham pelo bem estar da sociedade e não para atender a interesses pessoais. Isso é o básico do senso comum e deve mesmo ser banalizado.
Ao mudar os padrões aprendi também reclamar de coisas que, sob o olhar dos complexos problemas brasileiros, podem até parecer superficiais. É o inverno que não acaba, a dificuldade de achar vaga prá estacionar, a “careza” do aluguel, o limite de velocidade sempre tão rigoroso e uma infinidade de tantos outros problemas, bobos, mas que, no fluxo da vida, também atrapalham – em menor grau, é verdade. E tem também os problemas que só os expatriados viverão. Cada vez mais sinto falta da energia brasileira, da liberdade de poder beber na rua, do povo que faz batuque, ri alto, abraça e beija. Das nossas informalidades, do país onde tudo é motivo de festa e as coisas acontecem até tarde, mesmo durante a semana.
O que descobri ao longo desses jovens três anos vivendo na Austrália é que, ao me livrar dos problemas do Brasil, agreguei à minha vida uma série de tantos outros. Troquei nossa falta de educação, violência e corrupção por uma língua que dificilmente me deixará expressar com mesma precisão e naturalidade que faria português, por um mercado de trabalho para o qual minha faculdade tem muito pouco ou nenhum valor, e que tira o mérito das minhas experiências profissionais, já que nenhuma delas ocorreu no mercado local. E esses são alguns dos tantos outros obstáculos trazidos por uma vida recomeçada do zero, mesmo que você já tenha vivido pelo menos duas décadas dela.
Os desafios agora são aprender a lidar com a “amputação cultural” que sofri; com o tanto de mim que deixei no Brasil, mas que nunca me deixará. Como viver longe dos meus, sem sentir cheiros de infância, carinho de mãe, sem a turma da faculdade por perto, sem as piadas que só têm graça no meu ciclo de amizades…
Se por um lado a readaptação no Brasil fica a cada dia mais improvável, por outro a vida longe de casa apresenta desafios que muitas vezes parecem intransponíveis. Talvez nunca sinta que pertenço à Austrália. Talvez deixe de pertencer ao Brasil. Talvez um dia consiga me “sentir pertencida” a ambos. Ou a nenhum. Dúvidas e culpa são algumas das principais companhias que ganham os expatriados.
Entre dias de plenitude e certeza pela minha escolha, vivo outros cheios de melancolia, saudade profunda e solidão. Sim, são esses os dramas do primeiro mundo. Ainda prefiro lidar com eles do que com questões básicas ainda não resolvidas no Brasil. Se essa mudança nem sempre me faz mais feliz, ao menos tem tornado minha existência um pouco mais interessante. E, para mim, é isso que importa. Frente e adelante!
Image: Natália Godoy
Sensacional !!! Traduzindo sentimentos. Morei na Aus e to arrumando as malas pra voltar…e embora as pessoas aqui, achem que é uma grande besteira largar tudo pra ir ser garçonete ou cleaner, “abandonar” a família e a pátria, elas jamais conseguirão entender esse outro lado pelo qual preferimos optar, o de ter as coisas básicas funcionando, que por mais que se tornem clichê pós adaptação, viver sem elas no Brasil se torna difícil. Como eu sempre digo, no Brasil, nós “sobrevivemos”, mas só quem sai daqui pode perceber isso. Se todos pudessem dar um pulinho em algum lugar que funcione, poderia conhecer e entender esse outro lado da moeda.
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Isso aí Claudia, siga aquilo que parece sensato para você! Boa viagem e boa sorte, beijo!
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Natalia, acabei de voltar para o Rio depois de um ano e meio na Austrália. Assino embaixo tudo que vc escreveu. Eu já vivia uma rotina na Austrália e vida de estudante não é fácil, é ralação sem fim. Voltei e o primeiro sentimento que tive foi de tristeza, de ver minha cidade abandonada e de ver a pobreza que muita gente vive. Voltei com olhos diferentes e muito mais crítico. Nunca me senti que pertencia à Austrália e agora sinto que não pertenço mais ao Brasil, ou Rio. Como estou na minha primeira semana, acredito que essa sensação vá mudar com o tempo, mas não quero perder o que aprendi vivendo em Sydney, não quero voltar a ter olhos acostumados como eu tinha antes da incrível experiência na Austrália. Sinto me um extraterrestre aqui, mas espero mudar as pessoas a minha volta e tentar passar para elas um pouco do que eu aprendi. Sucesso ao voltar e quem sabe não poderemos trocar experiências hehehe
Um abraço,
Joyce.
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Puxa Joyce, obrigada por compartilhar sua experiência. A readaptação é sim muito difícil, tem que ser bastante tolerante e paciente, e dar valor a todas coisas boas q vc ganhou ao voltar pro Brasil. A experiência incrível que vc viveu vai sempre te trazer boas memórias e certamente te fez uma pessoa melhor. Talvez a gente tenha é que parar de achar que a felicidade está no Brasil, na Austrália ou onde quer que seja, é passe a busca- lá em nós mesmas né? Boa sorte querida, aproveite a cidade maravilhosa e seguimos em contato sim 😉
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Querida Amiga Irmã…Achei maravilhoso o teu post….porque ainda tenho muitas dúvidas em ficar ou largar tudo e me aventurar por esta vida, mas também é fato que viver num local em que a morte foi banalizada. Aqui as pessoas simplesmente ao andarem com seus cachorros são mortas, inclusive no bairro Menino Deus…em função de todo o exposto, o Brasil perdeu todas as referências de limites do ser humano…seja roubando, seja assaltando, seja matando. Talvez minha visão pessimista demais possa ter a influência que conheço o primeiro mundo e sei o quanto é bom, mas atualmente as pessoas (sem exageros) acordam sem saber se ao fim do dia terão emprego e no caminho de volta chegarão em casa inteiras…esse é o que virou nosso país, nosso Rio Grande. Também sei das dificuldades e preconceitos que enfrentamos no exterior, e não são poucas…realmente são dúvidas, culpas, histórias que nos acompanham…o negócio é nunca perder a nossa fé…e tentar lidar da melhor forma possível com nossas escolhas sem nos questionarmos tanto…Um beijo
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Isso aí amiga, a verdade é que a gente sempre quer o que não tem… Deus abençoe o Brasil e, principalmente, os Brasileiros! Te cuida amiga, beijão!
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Não sei exatamente porque, mas me emocionei com seu texto!
Talvez por compartilhar dos seus sentimentos sem ao menos ter compartilhado dessa experiência de morar em um país que funcione ou talvez pelas verdades contidas em suas palavras sobre o caos do nosso país.
Enfim… Adorei o texto, e na minha opinião o detalhe é justamente esse, cada um entender em qual lugar ou quais problemas quer para seu dia a dia!
No meu caso eu também prefiro conviver com a saudade, com a falta da energia do nosso povo, com o trabalho que não foi o que sonhamos, mas em um país que funcione mesmo custando caro, e acima de tudo que tenha segurança!
Estou me planejando para um intercâmbio na Austrália, e mais do que o interesse pelo idioma estou indo em busca de paz e qualidade de vida, estou “indo embora” por medo.
Parabéns pelo blog e pelo belo texto!
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Brigada Valéria, lindas palavras! Espero que encontre na Austrália sua paz e o estilo de vida que merece, o ambiente aqui realmente é mais propício para isso. Tenho certeza que será uma experiência enriquecedora. Beijão!
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Olá Natalia, li seu texto e adorei a forma com que consegue ter exatamente a mesma percepção do Brasil que tenho. Nunca morei fora, estou com planos de emigrar com minha esposa em 2016/2017 para Austrália, como você disse começar do zero novamente após, para nós, quase 3 décadas. Fui criado em uma cidade do interior goiano e nunca imaginei sair do país, nem mesmo ao Paraguai ….,kkkkk Mas após ir aos EUA a trabalho e passar 8 dias por lá, percebi que a minha crítica sobre os problemas básicos mal resolvidos em nosso país são muito sérios, e que os “revolucionários” que estão lutando por um país melhor, muitas vezes não tem noção alguma do que é uma pátria melhor e estão lutando pelos objetivos errados. É pobreza, de dinheiro, cultural, saúde, educação, saneamento,…..,….,… espírito,… Sou muito patriota, já defendi nossa bandeira dentro das quadras e campos pelo esporte, e digo, que tirando essa parte, o restante não tá dando tanto orgulho. Acompanho seu blog mas nunca tinha respondido. Parabéns por tudo, tenha muito saúde para continuar tendo sucesso !!!!
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Heitor, brigada por acompanhar o blog. Boa sorte na empreitada de vcs, tenho certeza que, de alguma forma, ela irá contribuir com sua evolução pessoal. Continuemos patriotas e torcendo pelo Brasil, da onde quer que estejamos, seja no esporte, na política, na segurança… Um beijo!
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Me emocionei, tirou as palavras da minha boca, me sentia exatamente assim nos 8 anos que vivi em Zurich. Agora depois de 14 anos no Brasil estamos na dúvida ficar ou voltar. O tempo corre contra nós, nosso filho já está com 11 anos, precisamos decidir.
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Natália, parabéns pelo post. Mudei com a família (esposa, 2 filhos) para o Canadá, e já enfrentamos sentimento assim algumas vezes, apesar de ainda estarmos ainda em fase de adaptação (temos só 5 meses).
Uma das coisas que sempre tento colocar na nossa cabeça é que somos cidadãos do mundo, e nossa estadia aqui, no Brasil, ou qualquer outro potencial país para onde vamos mudar no futuro (se acontecer), significa apenas aonde estamos vivendo a vida no momento. Isso ajuda bastante a espantar a sensação de não-pertencimento. Hoje, ainda surtos desta sensação aqui, não sei se vai se tornar crônico um dia, mas lembro-me que meus últimos 1.5 ano no Rio, essa era a mesma sensação que tinha lá: achava, simplesmente, que aquele não era mais lugar para se viver. Virou crônico no lugar aonde nasci.
Claro, saudade há. Hoje com Internet, a coisa é diferente, pois falamos com as pessoas que gostamos todos os dias, voz e vídeo. Não é a mesma coisa, mas ajuda bastante.
E quando aperta, vou correndo checar o G1, O Globo, iG Notícias, etc. Pronto. Basta pra sentir que fizemos a escolha certa. 🙂
Não sei como é na Austrália, mas aqui vivemos rodeados de pessoas de todas as nacionalidades. Ásia, África, América do Sul, todo mundo com muita representação aqui. São pessoas felizes, batalhando a vida, em busca de um futuro melhor. Cidadãos do mundo, como nós, e isso também ajuda bastante a reforçar este pensamento.
Ainda não visitamos o Brasil. Minha expectativa é que vai ser uma viagem emocionante, mas acredito que vai ser só uma “visita” mesmo. Posso estar enganado e mudar meu pensamento até lá, mas se fosse hoje, faria tudo para visitar nosso país, mas com o ticket de volta no bolso.
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Uma vez li que todos que deixam seu país passam a ser estrangeiros tanto no local de destino quanto no país de origem… E quem sabe um dia se acostumarão em ser cidadãos do mundo né? Brigada por compartilhar sua jornada aqui, Flávio, deves ter uma família linda e super cosmopolita. Bjo!
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Olá Natália já se passou quase um ano desse texto, qual a sua opinião hoje? Vc ainda pensa da mesma forma ou algo mudou? Voltou pro Brasil ou continua na Austrália?
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Oi Carina! Puxa, obrigada pela pergunta, me fez olhar pra trás e ver que sim, as coisas melhoraram – não mudaram muito mas melhoraram! Confesso que tive um 2015 bem pesado, e quando escrevi esse texto estava no auge de uma crise de adaptação e vivendo uma série de problemas pessoais. Ainda estou na Austrália e vivendo um momento mais positivo – que não sem se vai durar, mas talvez não estivesse sendo tão bom se não fosse meu terrível 2015… Beijão!
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