Sobre a cara de pau necessária pra aprender um novo idioma

Entre tantas angústias que a vida do outro lado do mundo trás, aquela que atinge a quase todos, como é de se esperar, é superar a barreira do idioma. Aprender um novo bê-á-bá e incorporar a um vocabulário já consolidado milhares de novas palavras é um projeto ambicioso. Requer um tremendo esforço aprender termos intraduzíveis, se acostumar que push não é puxe, pretend não é pretender nem que essa jornada será easy.

A capacidade de verbalizar nossas emoções, desejos e frustrações é a principal característica que diferencia os seres humanos dos animais. Assim é compreensível que, uma vez tendo essa habilidade comprometida, nos sintamos parcialmente incapacitados.

Passei por duas situações marcantes em que estive impossibilitada de me comunicar. Em uma delas eu estava na Tailândia, mas isso podia ter acontecido nos Estados Unidos, na Jamaica ou no Brasil. Durante essa viagem, fui atingida por uma laringite. De rouquidão desconfortável até perder a voz por completo foi questão de 2 dias. A angústia que isso me causou foi aguçada pelo fato de que fiz a viagem para encontrar um melhor amigo do Brasil, de quem moro longe há anos. A expectativa era contar minhas novidades, opinar sobre as histórias da vida dele e naturalmente compartilhar meu choque e encantamento diante de tudo que vivenciava na Tailândia. A realidade foi que, mesmo sem me sentir fisicamente debilitada, perdi o instrumento básico que me permitiria fazer isso tudo. Era difícil tanto prá mim, falante que sou, quanto pra ele, que viajava acompanhado porém “sozinho”. (Eu valorizo muito o poder do silêncio, esteja só ou acompanhada, mas aquela viagem definitivamente não havia sido feita com esse propósito de introspecção.) Muitos corticoides depois, minha voz foi retornando, junto com a capacidade de viver o momento um pouco mais plenamente.

A segunda situação em que perdi o poder da fala não esteve relacionada a nenhum problema com a voz. Na verdade eu podia falar sem parar, até mesmo aos berros… Só que nada disso faria com que os chineses me entendessem. Fosse em inglês, português, espanhol ou até me arriscando nas poucas palavras que sabia em mandarim, nada funcionava. Perdi a conta dos perrengues e do tanto de emboscada em que me meti durante os 10 meses que passei na China.

Na pior delas, estava na rodoviária da cidade onde morava, na fila prá comprar passagens. O chinês da frente, ao ver uma estrangeira (provavelmente pela primeira vez na vida), bravamente fez uso da oportunidade e utilizou todas palavras do seu limitado vocabulário em inglês. Eu contei prá ele que estava indo à cidade onde o meu namorado morava e que, terminado o feriado, viajaria de volta para onde estávamos:

– Aliás, será que você poderia me ajudar a comprar a passagem de volta prá cá? – pedi o favor sabendo do martírio que era, para mim, conseguir qualquer coisa na China.

Em meio a todo aquele formigueiro humano típico chinês, o acompanhei no guichê e mostrei no calendário o dia que queria voltar. Dei o dinheiro e fiquei eternamente grata pela benção divina que colocou aquele anjo no meu caminho. Olhei o ticket e, dentre todos aqueles ideogramas igualmente lindos e confusos, só consegui entender os números. A data e o horário estavam certos, o outro número devia ser minha poltrona. Tudo certo, xie xie, nice to meet you, bye bye.

Chegado o dia da viagem, lá estava eu, mostrando minha passagem prá todo vivente uniformizado e seguindo a direção para onde apontavam. Uma vez no ônibus, me senti orgulhosa por estar conseguindo me virar naquele país tão diferente. Viajei, viajei, viajei… Sem ter ideia de onde estava, nem quanto tempo faltava. Tive a impressão de que a viagem estava mais demorada do que na ida. Convenci a mim mesma de que deviam estar fazendo um caminho diferente – a real razão da demora eu jamais eu ousaria tentar perguntar. (Note que isso se passou em 2008, quando smartphones e afins ainda não tinham dado as caras.)

Chegando no destino final, peguei minha malinha, entrei no táxi e mostrei o cartãozinho onde estava escrito meu endereço em chinês – um pedaço de papel que, durante minha estadia na China, se tornou parte vital do meu corpo.

Ao ler o endereço, o taxista começou a falar sem parar. Achei que ele queria discutir qual caminho eu preferia que ele tomasse. Respondia, em vão, que tanto faz. Em inglês, lógico. Ele seguia resmungando, indignado, quase bravo. Até que liguei prá chinesa que morava comigo e entreguei o telefone pro taxista.

– Natália, você está em Guangzhou, não em Quanzhou.

Voltei prá rodoviária, furiosa com os 750 km extras percorridos e com raiva do rapazinho que havia comprado a passagem errada. Exausta, chateada e sem dinheiro prá comprar mais uma passagem. Olhei ao redor e não vi nenhum caixa eletrônico. Sem disposição pra fazer mímica que descrevesse um caixa eletrônico nem procurar o termo ATM no meu dicionário inglês-mandarim, só me restou chorar. Aos prantos. Sozinha. No meio da rodoviária. Alguém haveria de me socorrer.

Finalmente um policial apareceu, percebendo meu pânico. Não lembro bem como, mas de algum jeito conseguiram me colocar de volta no ônibus certo, onde me sentei cabisbaixa e segui mais umas 8 horas de estrada. No total, foram 2 dias viajando. A única lembrança que tenho é do motorista olhando prá trás prá ver se estava tudo bem comigo. A linguagem do afeto é universal…

Essa história me provou que quem tem boca pode até ir a Roma, mas se não falar a língua local vai rodar muito até conseguir chegar em casa…

O resto da minha estadia na China eu segui com mais cautela, mas ainda assim fui passada diversas vezes prá trás, até me acostumar que, sem falar a língua deles, isso faria parte do pacote. Não poder se comunicar com clareza (ou ao menos se comunicar), e nunca ter as respostas sobre o que acontece ao seu redor dava uma certa angústia. Eu sonhava com o dia que poderia sair na rua e pedir trivialidades bem do jeito que eu queria, sem ter que me desdobrar em 20 pra poder ser compreendida. “100 gramas de queixo lanche, fatiado bem fininho.” “Um corte de cabelo repicado tipo o da menina da novela.” “Uma saia rodada azul petróleo que não marque a cintura.” Na China eu apontava pro que queria e me contentava com o que viesse. 

Morando na Austrália há quase 4 anos, a barreira da língua não é mais entrave. Contudo, infelizmente sou constantemente lembrada (quase sempre por mim mesma) dessa desvantagem que tenho com relação aos nativos da língua. E não estou sozinha: é comum brasileiros compartilharem dessa mesma insegurança. Piadas nossas que prá eles não tem graça, gracinhas deles que a gente só ri prá não ficar de fora… Sem contar quando nós mesmos somos o motivo da piada. (Quem nunca confundiu chicken com kitchen ou pronunciou dessert no lugar de desert?)

Poder se comunicar é uma das principais necessidades humanas. É através disso que estabelecemos relações, nos inserimos em grupos de afinidades, resolvemos (e criamos) mal entendidos. Uma vez li que a pessoa que se comunica bem consegue se entender melhor, entender o outro melhor e se fazer entender melhor, o que por si só traz mais segurança e motivação para lidar com os desafios da vida, além de melhorar a qualidade das relações.

Com insistência o progresso sempre chega. Da mesma forma que modificamos nosso sotaque e adotamos gírias locais quando mudamos de estado no Brasil, é quase instintivo que repitamos expressões e pronúncias vindas dos gringos. A gente os copia para que nos entendam, mas para isso é importante estar cercado deles.

Nessa trajetória em busca da fluência em um segundo idioma, é natural se sentir ignorante ou, no mínimo, em desvantagem. Balbuciar palavras novas feito uma criança, mesmo que você já tenha barba na cara, faz com que nos sintamos um pouco ridículos. (E quando as crianças nos corrigem, então?) Mas aprender uma língua nova requer coragem para parecer ridículo. Requer paciência para quando não nos entendem, humildade quando te corrigem e muito bom humor pra rir dos tropeços ao longo do caminho.  A vantagem é que junto com o novo idioma, ganhamos também uma série de novos atributos pra vida.   

Lembre-se que sem essa ferramenta tão fundamental na interação humana, é normal nos sentirmos inseguros e duvidarmos das nossas habilidades sociais e profissionais. A melhor solução para superar o temor da língua estrangeira? Aproximando-se dela. Sendo cara de pau e expondo-se a situações desconfortáveis onde você não tem escapatória senão falar a bendita língua estrangeira. (Talvez não na China.) Como dito no filme The Godfather (O Poderoso Chefão): keep your friends close, but your enemies closer.

Texto: Natália Godoy – Imagem: Getty Images 

 

 

23 comentários sobre “Sobre a cara de pau necessária pra aprender um novo idioma

  1. Eliane Costa disse:

    Excelente! Super bem escrito e interessante. Seu jeito de escrever, Natália Godoy é cativante e prende o leitor.
    Eu gostaria de fazer uma observação quanto à digitação no último parágrafo, terceira linha onde se lê sentimos, deveria ser sentirmos. Faltou o ‘r’.
    Parabéns!

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  2. José Márcio disse:

    Uau! Maravilhoso! Parabéns Natália Godoy. Você é uma espetacular ajudante de brasileiros como eu que estão a pouco tempo na Austrália (Melbourne). Novamente, parabéns e muito agradecido.

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