Colecionando nãos

Um ano hoje tentando convencer o pequeno empresário da região norte de Sydney de que tenho comigo, na bolsinha pendurada ao ombro, um produto que pode de alguma forma melhorar o seu negócio. Da térmica vem o barulho do tilintar de garrafas, e é de onde retiro a bebida do momento, a tal da kombucha, kombuchá, cumbusha, cambodja…

A primeira reação é quase sempre “não, obrigada, já tenho um tantão de bebidas aqui”. Quando lembro que eu mesma já disse não a essa oportunidade de emprego, para em seguida a lei kármica jogar outro não na minha cara (dessa vez vindo da vaga que realmente queria), penso que há chances de fazer o dono da bodega mudar de ideia, assim como eu mesma fiz 1 ano atrás. Ao dizer sim para essa vaga, mal poderia imaginar a sucessão de nãos que colecionaria dia após dia.

Para cada venda de fechada, estimo que seja rejeitada umas 30 vezes. A primeira delas não acontece de modo tão explícito. Do outro lado do balcão, um sorriso amigável me saúda. Tão logo o simpático portador daqueles dentes reluzentes percebe que não estou ali para engordar seu porquinho (não ao menos naquele instante), seu semblante fecha, feito comércio em véspera de Carnaval. Mas sigo o baile, a partir de então menos sorridente e mais empenhada em não atravancar o caminho dos demais foliões, aqueles que tem algo mais importante a dizer: “Quanto lhe devo?”. Se na cadeia hierárquica dos negócios prevalece a máxima de que o cliente sempre tem razão, o cliente do meu cliente reina absoluto.

Mas engana-se você que acha que meus desafios seguintes são tratar de preço, condição de pagamento, cenário macroeconômico da categoria ou percentual micro biótico contido na bebida. Para chegar minimamente em qualquer um desses assuntos preciso antes começar a desconstruir aquele não emitido em forma de cara enfezada. 

Meus interlocutores variam desde donos hippies de cafeterias na praia até chineses que imigraram com a família e há 20 anos dedicam a vida à quitanda, passando por indianos que não admitem fazer negócios com uma mulher, italianos que me deixam um pouco preocupada com o estereótipo que têm das brasileiras e, finalmente, brasileiros que quase sempre apoiam os conterrâneos.

Das coleções de desculpas que coleciono, não tem erro: assim que bate a primeira brisa, o argumento do frio lidera. No verão: todo mundo viaja. No Natal as lojas estão ocupadas demais. Em Fevereiro está todo mundo endividado. “Vou reformar, não tenho espaço, a vizinha vende, ninguém vende, a que marca tenho está boa o suficiente…”. Muitos deles estão certos e conhecem seus negócios melhor do que qualquer vendedor de qualquer coisa. Não cabe a mim ficar rebatendo argumentos, uma vez que o objetivo é ganhar a venda, não a discussão. O desafio consiste em identificar um não motivado por uma questão verdadeira do não que esconde pura e simples resistência à mudança.

Os nãos que mais me chateiam são os vindos dos compatriotas, possivelmente porque são neles que deposito maior expectativa. Tanto eles quanto eu, afinal, conhecemos bem os desafios de ser brasileiro no mundo – e no Brasil: “Eu podia estar roubando, assaltando, matando…”.

Pior do que esses, há um outro tipo bem específico: o dos clientes misteriosos. São os donos das lojas que vão ao estabelecimento quando eu não vou e, quando chego, veja só: “acabou de sair”. Os funcionários nunca sabem dizer ao certo quando os tomadores de decisão estarão lá. Já eu, sei bem: é nos dias em que eu não vou. Às vezes me pergunto se essas pessoas realmente existem, sem querer enxergar que elas não só existem como também não estão interessadas. Ao mesmo tempo que o mistério pode alimentar uma expectativa e um pingo de esperança, em geral é a frustração do silêncio que prevalece.

Os sims que recebi são numerosos o suficiente, mas nunca serão o bastante. Enquanto isso, sigo me perguntando quantos nãos ainda preciso receber para finalmente ter o sim que busco naquele dia.

Depois desse emprego estou convencida de que nenhum não derruba para sempre. Nos balançam, é verdade, mas mantêm o movimento da vida, seja rumo à próxima oportunidade, seja numa mudança de direção. Porque de todos os nãos que recebi, o pior deles vai ser sempre aquele que nunca foi dito.

Texto: Natália Godoy

4 comentários sobre “Colecionando nãos

  1. Livia disse:

    Que coisa mais rica esse texto! Sou vendedora no Brasil, já comentei isso nos seus stories. Fazia exatamente o que você faz, só que o produto era Coca Cola, o que leva sempre todo mundo a pensar alto ou não “coca cola se vende sozinha” hahahaha! Ninguém sonha o quão difícil é vender na rua, bater meta de todos os produtos da compania, discutir preços, estratégias de venda, prioridades, pq né, seu produto não é foco de todo mundo. Lidar com produto vencido, cliente desanimado da vida, cliente quebrado, cliente que acha que você uma menininha magrinha pequenininha não sabe do que tá falando. São tantos nãos. Mas aprendi já bem nova que a venda começa no não. É quebrar as objeções todas que eles sempre nos apresentam como desculpa, pra não mudar de opinião, abrir a cabeça, pensar fora da caixinha. Admiro mutio você, e confesso que sinto falta desse trabalho que eu tinha, que me agregou muito! Amei seu texto!!!!

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  2. Nossa me admira que vc faz esse trampo na Austrália! Muuuuuito desafiador continuar sendo simpática. Quando eu for prai vou pedir em todo estabelecimento:)))

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  3. Tamara Azevedo disse:

    Muito bom texto!! Mesmo não vendendo nada, recebemos/recebo diversos não na vida profissional e pessoal. A ideia do texto vale pra tudo! Muito interessante. O importante é entender o não e tentar tirar algo BOM dele. Seja para mudar o não para o SIM ou mudar a direção e encontrar outra saída (a porta de embora que seja🤭). Tem uma frase que não sei de quem é mas que me falaram uma vez e levo muito pra mim: o pior do fracasso não é o fracassar e sim o não tentar. Na venda acho que é igual, o NÃO vc ja tem, o tentar vender mesmo sabendo a possibilidade de receber o não… ja são outros quinhentos. A cabeça ja é outra e as estratégias são mais elaboradas. Beijão

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