Tem muita gente precisa de profundas reflexões para descobrir seu verdadeiro propósito na vida. Ao contrário dessas pessoas, eu vim ao mundo com uma função bem definida. E exerço tão bem meu papel de predador que o governo aqui da Austrália pretende exterminar 2 milhões de felinos, como eu, nos próximos anos. Diante dessa intimação, precisei rever meu papel na sociedade, de modo que possa contribuir a ela sem representar uma ameaça à vida selvagem – e, claro, poupando minhas preciosas 7 vidas.
Resolvi então adotar os meus donos, esse simpático casal que vive comigo há 6 meses. Eu deixo eles me alimentar, assim criando a ilusão de que cuidam de mim, quando na verdade quem toma conta deles sou eu.
Ao que tudo indica, ela preferia ter um cachorro. Percebi a pouca intimidade assim que fomos apresentadas. Senti nela uma certa frustração porque eu não abanava o rabo nem estaria sempre esbanjando energia e felicidade. Talvez tenha até se amedrontado com minhas garras afiadas, meus olhos assustadamente verdes e minhas expressões de indiferença.
Com o tempo, porém, eles foram aprendendo a me entender. A primeira vista, meu comportamento pode até parecer misterioso e desinteressado, mas na verdade não passa do reflexo de uma personalidade que tem iniciativa própria, é autossuficiente e, sim, muito carinhosa. A fama de interesseiros e frios deve ser porque não disparamos em direção aos nossos donos diante de qualquer esboço de assobio – uma verdadeira rejeição para os humanos, sempre tão desesperados por atenção…
Para esse carente bicho-homem, já deixo avisado: assim que eu mesma bem entender, darei um jeito de me acomodar entre/sobre /embaixo do corpo quentinho de vocês. Ou em cima do computador, na frente do livro, sobre o iPad, atrás da privada, não importa, desde me faça ser notada e estabeleçamos o máximo de contato físico um com o outro, numa troca serena de calor e amor.
Esses dias escutei minha pessoa de estimação falando que eu não sou muito esperta. Provavelmente ela se referiu ao fato de eu estar sempre tentando agarrar qualquer coisa, seja uma mão se mexendo debaixo das cobertas até o reflexo de luz que o celular faz quando está no sol. Provavelmente ela tenha esquecido que, embora eu seja domesticável, meu habitat natural é o mato. Mesmo morando num apartamento, sempre terei essa essência caçadora, da mesma foram que me manterei em estado de constante alerta para não virar presa. E antes que seja criticada novamente, gostaria de saber se ela consegue identificar quem está chegando no prédio apenas pelo barulho do carro. Ou quantas costelas teria quebrado se caísse da sacada, assim como eu, que sobrevivi ilesa sem um arranhão sequer?
Outra das minhas atribuições aqui em casa consiste em manter meus humanos sempre entretidos. E como não rir dos meus rompantes de energia que me fazem ter medo até da própria sombra e disparar numa corrida maluca pela casa toda? Como não gargalhar quando eu lambo os dedões dos pés molhados deles, assim que saem do banho? Como não amar toda vez que eu me meto em enrascadas dentro de sacolas e caixas, ou quando me escondo no interior de malas, armários e gavetas até então inexplorados?
Ainda assim, volta e meia escuto eles conversando sobre me colocar na coleira e levar prá passear. Se eles soubessem a riqueza de odores, o tanto de ameaças que sofro e aventuras que vivo nessa floresta imaginária que eles chamam de casa… Por favor me deixem em paz. Eu não critico os litros que litros de água que vocês despejam sobre si diariamente, nem o tanto de suas vidas que desperdiçam olhando telas de eletrônicos, ou o volume ensurdecedor de uns filmes violentos… Tem até humanos chamam uns aos outros de “gato”, dá prá entender?
Mesmo que nos estranhássemos no início, acabamos descobrindo que temos muito mais em comum do que imaginávamos e aos poucos vamos aprendendo a respeitar nossas diferenças. Aqui em casa ganho liberdade a cada dia: eles já fazem vista grossa toda vez que subo na bancada da cozinha, abrem a porta do quarto prá mim todas as manhãs e me deixam tomar a água assim que saem do banho. O plano é, daqui uns 2 anos, ter acesso noturno à cama, tomar água que fica enxaguando pratos sujos e quem sabe experimentar comida de humanos.
Até lá, continuo iludindo eles, achando que meu papel é estar sempre linda, fofinha e quentinha. Sigo dormindo em posições que variam de mimosa à contorcionista, e servindo de modelo pras zilhares de fotos que não cansam de tirar de mim. Também cedo minha pele de bichinho de pelúcia pros afagos deles – e tem dias que haja paciência prá tanta esmagação.
Graças ao talento da minha raça e uma perseguição doida que sofro, pude rever meu papel no mundo e cuidar desse casal que nunca imaginou precisar tanto de mim. Ao primeiro sinal de carência, cogite a possibilidade de ser adotado por um gato também. Agora com licença que vou me aconchegar no joelho, ombro ou barriga mais próximo. Miau.